sexta-feira, 13 de março de 2009

Sexta de Dennis Radünz

A arte de ser feliz

Diante da minha janela corre o cosmo - espanta-me que exista tamanha grandeza dentro da esquadria de alumínio e vidro, aqui, porque o cosmo principia no exato lugar em que se o alcança. Distraidamente, a olhos vistos, a eternidade dos espaços infinitos principia na janela, diante de uma xícara de café que se evapora e, também, da cidade que se derrama no planeta como se fosse uma folha de papel-volátil. Tudo isso me felicita. Porque, no Grego, kósmos significa ordem e também beleza, de onde deriva o vocábulo cosmético. Posso dizer que toda essa beleza está em ordem.
Da minha janela avisto o mundo, sobre-humano, que não me faz senti-lo muito maior do que a pequena chaminé poucos metros abaixo do meu quarto andar. Chaminé envolta pela rabiola duma pipa que, como a cauda dum corpo cadente, veio abraçar a torre tênue de tijolo e argamassa. Rabiola que se perdeu em torno dos tijolos, planta parasita, mas que é, também, o abraço que tem faltado a tantos. Chaminé com pandorga em volta, decididamente, me felicita. Da janela, observo também o terreno baldio, na esquadria de muros sem reboco, com a sua mata desarvorada. Se os deuses continuarem existindo, nenhum edifício irá brotar desse lugar que é coberto, de lado a lado, pelo pio amarelo de um canário canoro. Uns artefatos sem uso - tábua de lavar roupa, cinza de fogueira, cavalo pastando capins maduros - compõem esse mínimo universo em que costuma cavoucar o homem velho com o cachorro. Eles conversam, sozinhos, achando que o infinito começa, por exemplo, no silêncio vizinho. Isso os felicita.
Da mesma janela, adivinho o ribeirão subterrâneo, carregado em segredo por debaixo das lajes da servidão (que é um outro nome para beco), descido desde o Morro do Horácio, enquanto, sem que se saiba, um alevino sobrevivido corre na direção da água salobra. Mais adiante, o próprio mar, morno, se evapora na mesma direção dos ventos fracos (na concepção de um ciclone novo?) e um helicóptero da polícia corta a maresia ao meio. Tudo isso existe no cosmo afora da janela.
Janela de uma felicidade puérpera - como não dizer que eu e Colombina observávamos, daqui, não necessariamente vestidos, o cosmo? Dessa mesma janela de onde vejo um papel pousar (um papel-pólen que se deita no vazio), com um nome nele escrito, um nome que alguém perdeu e outro alguém irá achar, e, por causa disso, uma felicidade nova me envelopa e a mim se endereça, porque sei que o destino será outro e, olhos nos olhos, a remetente e o destinatário irão pensar que o mundo nasceu de novo, só por causa do seu encontro amoroso. Isso ainda me felicita.
Na janela, as situações mais corriqueiras alegram - o gole de iogurte, um aceno, uma chuva que veio, depois saiu. E é nessa mesma janela que exercito contemplar o mundo com olhos baços - hipermétrope de nascença, sem óculos, observo o cosmo se confundir por detrás das figuras de luz, como se tudo o que é sólido evolasse, deixando em seu lugar somente o leve aroma da sua ausência, como a linha de luzes do Continente que desaparece. Resta a felicidade que nasce ao descobrir-se que as coisas não são somente a sua fisionomia.
Mas, são tantas essa mesma e única janela que quase me esquecia de ser feliz por dentro. Dou então as costas ao cosmo e, dentro de casa, diante do mundo, a balbúrdia de livros contém nenhuma beleza aparente. Isso também me felicita, porque recordo o pré-socrático Heráclito de Éfeso: "o mais belo dos mundos é qual uma pilha de detritos amontoados ao acaso". E o cosmo me esquece, atarefado que está com o seu trânsito de buracos negros e de nebulosas.
Sinto apenas uma curiosidade: diante da janela, a menos de mil metros, na Polícia Federal, vive Fernandinho Beira-Mar 1 - não sei se, dali, ele pode avistar o cosmo; não sei de sua salga de lágrimas; não sei de suas alegrias íntimas. Mas sinto que ele, eu, todos, temos o destino do tamanho de nossa arte de extrair felicidade de um nada, ou de dentro, ou do cosmo.


- Nascido em Blumenau, Denis Radünz possui uma série de publicaçãoes, entre traduções de poemas infantis do escritor alemão Fritz Müller (1822-1897) a criações de sua autoria, a exemplo do livro Extraviário (Joinville: Letradágua, 2006). Coordena a editora Nauemblu e é cronista no jornal Diário Catarinense.
É considerado um poeta refinando, com domínio singular de sua língua. A metafísica e a finitude são questões perenes em sua poética. No poema citado, observa-se outra faceta do poeta: as expeirmentações na forma. O poema aqui é conteúdo e instrumento.

2 comentários:

Fernanda Bastos disse...

http://www.dilsonlages.com.br/home.asp
Link do bão!!!

Anônimo disse...

Mas neste mês só tivemos duas sextas-feira? =/